A ciência por trás das vacinas
Desenvolvimento de novos imunizantes é um processo rigoroso e demorado, mas é esse rigor que garante a segurança e eficácia necessárias para combater patógenos causadores de doenças
O desenvolvimento de novas vacinas é um processo rigoroso e demorado. Antes de serem liberadas para o mercado consumidor, novas formulações precisam obter a aprovação de órgãos reguladores oficiais, como a agência regulatória de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, a FDA, e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), no Brasil. Para isso, precisam passar por sucessivos e rigorosos testes de qualidade que comprovem sua segurança e eficácia — para se ter uma ideia, um estudo publicado na revista científica Lancet Global Health estimou que todo esse percurso pode levar entre 10 e 15 anos e exigir investimentos que variam entre US$ 1,2 e US$ 8,4 bilhões.
Tudo começa com os experimentos em células in vitro e em modelos animais (in vivo). Essa etapa, conhecida como estudo pré-clínico, é feita em laboratórios com pessoal especializado em manejo e experimentação animal e instalações com alto grau de exigência em biossegurança e bioética. Segundo a FDA, ela também demanda a produção de lotes do imunizante em escala-piloto. O objetivo é avaliar como o composto é metabolizado pelo organismo animal e se é seguro e eficaz para ser aplicado em seres humanos.
Aproximadamente 90% dos compostos avaliados nessa etapa são reprovados e não seguem adiante. Os que conseguem avançar são testados nos chamados ensaios clínicos duplo-cegos de fase 1, em geral com grupos de 20 a 100 pessoas. Segundo informações dos Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos, essa etapa serve para determinar os parâmetros de segurança relacionados à eficácia do imunizante e a dosagem da formulação mais indicada para uso em seres humanos. Neles, os voluntários são divididos aleatoriamente em um grupo de controle que recebe uma solução inócua (placebo) e outro em que é testada a candidata a vacina — para garantir a idoneidade do estudo, nem médicos nem participantes sabem quem está recebendo o quê.
Muitas das candidatas aprovadas nos estudos pré-clínicos são descartadas na fase 1 por não apresentarem os efeitos desejados — o que não significa que os dados produzidos sejam descartados. Pelo contrário, muitos são publicados sob a forma de artigos científicos em revistas especializadas, podendo vir a desempenhar um papel crítico no desenvolvimento de novas pesquisas sobre outros imunizantes no futuro.
Foi assim durante o desenvolvimento das vacinas contra o SARS-CoV-2, causador da COVID-19. Em meio à emergência sanitária, cientistas do mundo todo se debruçaram em estudos sobre os mecanismos de ação do vírus causador da Síndrome Respiratória Aguda Grave para avançar em uma estratégia de combate ao novo patógeno.
“A ciência é construída em cima da ciência”, destaca o imunologista Gustavo Cabral de Miranda, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP). “Sempre que um problema novo se apresenta aos cientistas, eles se debruçam sobre o que foi produzido no passado para orientar suas investigações”, complementa. É como uma caixa de ferramentas à qual se recorre quando precisamos consertar algo.
As formulações que apresentam bons resultados nos estudos clínicos de fase 1 avançam para os testes clínicos de fase 2, com grupos maiores de 100 a 300 indivíduos. O objetivo agora é verificar a relação entre a eficácia do novo imunizante e seus possíveis efeitos colaterais, e atestar se o produto realmente pode ser útil para a finalidade a que se propõe. Essa etapa pode se prolongar por até dois anos. Apenas um terço das formulações testadas em ensaios clínicos de fase 2 chegam à fase 3, última etapa antes do pedido de registro do produto nas agências regulatórias.
Essa fase pode durar até quatro anos e envolve estudos amplos baseados em um mesmo protocolo para o uso da nova vacina. Contam com a participação de vários centros de pesquisa, que testam o imunizante em grupos de 1 mil a 3 mil pessoas. Trata-se de um trabalho coletivo. Como em uma engrenagem, o conjunto só funciona quando todos os atores envolvidos estão integrados e afinados. Ainda assim, de cada 10 compostos que atingem esse estágio, apenas três são aprovados e liberados para comercialização.
Por causa dos altos custos e da exigência de equipes especializadas, o desenvolvimento de novas vacinas costuma ser um negócio arriscado e demorado mesmo em países desenvolvidos. Normalmente, as empresas farmacêuticas multinacionais são as únicas capazes de viabilizar as três fases de criação de novas vacinas. No Brasil, poucas instituições contam com a infraestrutura necessária para os testes em animais. Isso porque é muito custoso abrir e manter laboratórios desse tipo, e como a demanda por esse serviço no país é baixa, o investimento se torna muito arriscado. Segundo Mirada, a saída muitas vezes é recorrer a centros no exterior, que produzem as doses e as testam em animais, mas a altos custos.
O país também tem experiência restrita em ensaios clínicos de fase 1 e 2 em pequenos grupos de seres humanos, já que esses testes demandam alto grau de investimento e costumam ser coordenados por grandes empresas farmacêuticas sediadas nos países em que a tecnologia foi desenvolvida.
Tais limitações não são exclusivas do Brasil. Para contorná-las, a Organização Mundial da Saúde (OMS) conta com um sistema de pré-qualificação de imunizantes, o qual funciona de forma complementar e suplementar às agências regulatórias internacionais. Nele, a OMS realiza avaliações técnicas de qualidade, segurança e eficácia — por meio da revisão de estudos clínicos e laboratoriais e testes em seus próprios laboratórios ou no de parceiros — para garantir a eficácia e segurança do imunizante. Isso permite acelerar o trâmite de aprovação de novas vacinas para que estas possam ser usadas para apoiar programas de saúde pública de países de baixa e média renda.
Por ser um processo complexo e exigente, apenas alguns laboratórios produtores de vacinas no mundo conseguem obter a pré-qualificação. Uma delas é a biofarmacêutica chinesa Sinovac, cuja vacina contra varicela (catapora) foi pré-qualificada pela OMS em novembro de 2022. Essa foi a primeira vacina chinesa pré-qualificada pela OMS contra varicela e a quarta vacina da Sinovac a receber esse tipo de aprovação da agência internacional. Outras vacinas da empresa que receberam a pré-qualificação foram as voltadas ao combate da COVID-19, à hepatite A e à poliomielite..
As vacinas da Sinovac já foram distribuídas em mais de 80 países. Somente a voltada ao combate da COVID-19 foi aprovada para uso em mais de 60, entre eles o Brasil. “Tivemos resultados rápidos com a vacina graças ao acúmulo de experiência no desenvolvimento de vacinas inativadas nos últimos 20 anos”, destacou Yaling Hu, responsável pelas operações de pesquisa e desenvolvimento da farmacêutica chinesa.
“A ciência por trás das vacinas é sólida e elas são uma das intervenções médicas mais seguras e eficazes”, diz Miranda, do ICB-USP. O pesquisador explica que mesmo depois de aprovadas, as vacinas continuam sendo monitoradas pelas agências regulatórias para identificar possíveis efeitos colaterais raros ou de longo prazo não observados nos testes clínicos. “Essa vigilância garante que qualquer problema seja identificado rapidamente e, se necessário, medidas corretivas sejam tomadas.”
Ao se vacinar, uma pessoa não apenas protege a si mesma, mas também contribui para a proteção da sociedade como um todo, especialmente daqueles que não podem ser vacinados por razões médicas, como bebês ou pessoas com sistemas imunológicos comprometidos. “As vacinas ajudaram a erradicar ou controlar várias doenças grave”, diz o imunologista, referindo-se à varíola, erradicada em 1980, e à poliomielite, quase erradicada em todo o mundo. No Brasil, campanhas de imunização em massa permitiram ao país erradicar o vírus selvagem da rubéola e da pólio, que provocava cerca de 10 mil casos por ano na década de 1980.